domingo, 6 de julho de 2008

CERIMÔNIA (1)


O que poderíamos fazer de melhor que não fosse passar o dia todo encostado no muro da velha fábrica desativada. Ouvindo o canto às vezes irritante, e às vezes poético, das gralhas que pousavam na praia não muito distante dali.
Esperamos inutilmente pelos turistas que não vieram naquele verão, como nossas mães, cheias de esperança e boa vontade nos havia prometido.
Em um mês voltaríamos para a escola. Para quê? Era pergunta que todos nos fazíamos.
Dois anos que a madeireira havia fechado. Três que o velho Emilio fizera a barba de seu último freguês. Quatro que os caminhões não chegavam buzinando no mercado de Thomas. E cinco, que os homens sobreviventes de Riviera Bela viram um traseiro bonito.
Éramos seis. Mas não éramos personagens de romance. Não como muitas vezes gostaríamos de ser. Éramos de carne e osso. Muito mais osso, sem dúvida.
Aquele era um mês de chuva. Fred sugeriu que, como nossos antepassados, fossemos pescar sardinhas em alto-mar.
E barco? – não me lembro até hoje quem teve a infeliz idéia.
Vamos eleger um novo prefeito no final do ano, e então, tudo vai melhorar.
Um ano atrás, e cheios de entusiasmo aguardávamos a chegada do novo padre.
E resolveu o quê?
Pois é.
Mas acontece que padres não são como os índios que fazem chover.
E quem disse que os índios fazem chover?
Os livros.
Ótimo. Num deles está escrito que onde dois ou mais estiverem reunidos em meu nome eu lá estarei.
Devemos então rezar.
Fazemos isso todos os dias.
A culpa é do padre. Ele não pede por nós como deveria.
Como assim?
O pastor pede com mais entusiasmo.
Grande coisa isso. Continua chovendo, faltando emprego e comida na mesa do mesmo jeito. E já faz muitos anos.
Padre Firmino cruza a auto-estrada com seu carrão todos os dias para almoçar no Provenzanno.
E pastor Isaías celebra os cultos sempre com um terno diferente.
E sapatos também.
E de cromo alemão.
Se nós vivemos nessa merda é porque não merecemos coisa melhor. Tudo é merecimento. Se você planta coisas boas vai colher coisas boas. E assim se dá com as más.
Quem disse?
O livro.
Aquele?
Ora, então vamos comer livros. Rico em vitamina A.
Como assim?
A de ácaros.
A chuva apertou. Mas não arredamos o pé.
Longe, um cortejo vindo em nossa direção. Quando passou por nós, tomou a rua do Porto, mas antes, bem antes era o seu destino. Lá, os portões já estavam abertos, as terras removidas, e o buraco feito, para receber a sete palmos de suas entranhas o caixão de carvalho onde toda a maldade daquele esquecido e medíocre lugarejo seria consumida pelos vermes, graças a Deus.
Morreu fedendo, segundo dizem.
Todos morrem fedendo.
E todos nascem chorando.
Sim.
É a vida.
E é bom que não seja de outra forma. No fim das contas, ela iguala a todos.
Devemos ir até lá.
Pra quê?
Nos despedirmos.
Daquela peste? Vá você.
Sim. Acho que é o que vou fazer. Certa feita, meu pai estava desempregado, e ele pagou o aluguel para nós.
Ele era o Juiz.
Mas pagou.
Daquela vez. E das outras? Você não conta? As vezes que ele mandou despejar nossas famílias?
Estávamos atrasados com os aluguéis.
Você diz nossos pais?
Dá no mesmo.
Engana-se. Eu ia vender amendoins, e aquele boçal, que anos chamei de pai, ia para o bar. E a cada final de tarde, ele voltava, disposto a surrar a mim, meus irmãos e minha mãe.
Mas era o seu pai. Se ele bebia, era porque tinha motivos. Um desgosto profundo, talvez, com o qual não soubesse conviver.
O desgosto da vida dele foi ter engravidado minha mãe, quando ela tinha 16 e ele 19 anos.
Justifica.
Porra nenhuma! O que foi que eu fiz pra ele me odiar tanto? Não pedi pra nascer.
Você se engana. Todos pedem pra nascer.
Ah, você andou bebendo também?
Andei lendo.
Sempre os livros, não?
São melhores que as bebidas, eu garanto.
Prefiro música. Som! Entendeu, cara? Da pesada! Aquela coisa que entra pelo estomago, se espalha pelo peito e sobe para a cabeça. Aquela coisa... Delirante! Como é que eu vou explicar? Ora, eu sei lá!
Como o quê?
Andei fuçando na lan house, dia desses. Aquele site maluco que passa os filminhos.
Sei.
Como chama aquela merda?
Tubo.
Pois é.
E daí?
Meu! Fucei umas bandas, que já não existem. Cada som ! Você não acredita! Os caras tocavam aquelas músicas, e era algo diferente. Tudo fazia sentido! É como se no palco, eles se transformassem e transformassem tudo à sua volta... Porra, eles faziam o caralho do som! Algo legal de se ouvir. Baixão, guitarra, batera, teclado e vocal. E tudo escuro. Então, havia momentos em que a platéia parecia entorpecida, viajando em delírios mas, de repente, algumas luzes... Azuis, verdes... luzes que se projetavam de cima a baixo, cruzando os ares em rodopios. Fumaça. Luzes... Som. Era algo muito louco. Bom demais.
Cara você anda metido na maldita pedra, não anda?
Não!
Como não? Farinha, e de péssima qualidade, é isso?
Vê se não enche. Eu preciso arrumar dois reais pra ficar mais duas horas na lan house. E ver e ouvir tudo aquilo de novo.
Vá tocar guitarra, seu desgraçado, vá escrever suas músicas. E se você disser, que vai convidar a Taís pra dar uma volta sou capaz de vender o meu tênis e lhe arrumar dez reais pra um cineminha.
Você não entende, cara? Você não entende? Alguma coisa está acontecendo! Algo está mudando! E está acontecendo sem que ninguém perceba. E quando isto se der, talvez seja tarde.
Todos olharam para Fred, como se o levassem a sério. Mas não por muito tempo.
Era 6 horas quando chegamos à praia. Havia chovido. E os últimos raios de sol daquele dia davam adeus.
Deixei que meus amigos seguissem em frente, e fiquei olhando para a imensidão do mar. Quando criança, eu sonhava que aquela imensidão me levaria a um destino glorioso. Aos 16, eu só queria ser tragado em espírito por aquela imensidão. Para que as aves de rapina, pela manhã, se saciassem de meu corpo. Nada mais.
Os amigos seguiram caminhando. Longe. Ora correndo, rompendo as ondas, com chutes e murros, rindo, cantando alguns, outros dizendo coisas que, das pedras onde me encontrava, na orla da praia, eu sequer podia entender. E ia caindo a noite. E os holofotes acendendo aos poucos.
Sensação comum naqueles dias, os meus amigos cada vez mais distantes de mim. Não sentiriam minha falta.

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